Crimes of the Future disseca tudo, menos a narrativa | Crítica

“Cirurgia é o novo sexo”, ouve-se dizer a dada altura na mais recente longa-metragem de David Cronenberg, mestre do body horror. Após uma pausa de oito anos, o realizador regressa ao grande ecrã com Crimes of the Future, que vamos dissecar nesta crítica.

São quase duas horas de vísceras dissecadas, um impasse entre aceitação e recusa da evolução humana e um governo que a tenta ocultar. Enquanto isso, somos expostos a uma nova realidade: o ser humano evoluiu e, neste futuro distópico, dor física é algo quase inexistente. Como tal, modificações físicas e cirurgias performativas tornaram-se abundantes, sendo estas últimas consideradas perfomances artísticas e de caráter erótico.

Crimes of the Future é protagonizado por Viggo Mortensen (Saul Tenser), Léa Seydoux (Caprice) e Kristen Stewart (Timlin). Com estreia mundial este ano, no Festival de Cannes, e primeira apresentação em Portugal no LEFFEST, a longa-metragem chegou esta quarta-feira, dia 24 de novembro, aos cinemas portugueses para todos que julguem ter um estômago forte o suficiente para apreciar cirurgias em detalhe, com uma autópsia como digestivo.

Fotograma de Crimes of the Future, dirigido por David Cronenberg com as atrizes Léa Seydoux, Kristen Stewart e Viggo Mortensen em cena.

A longa-metragem é-nos introduzida através de uma criança, que devora um caixote de lixo de plástico, como quem se delicia com o seu prato favorito. Esta cena dispensa introduções: somos logo deparados com o mundo bizarro de Cronenberg. Neste futuro distópico, há quem tenha modificado o seu sistema digestivo para se alimentar de desperdício industrial e plástico, assegurando a sobrevivência humana face ao futuro que a mesma escolheu.

A atmosfera do filme é logo definida desde início. Boa cinematografia, com uma estética cuidadosamente estabelecida através de uma palete de cores neutra (onde o único acento de cor é o sangue), espaços decrépitos que transparecem com clareza o declínio da humanidade e toda uma panóplia de elementos criados para aquele universo.

Cronenberg oferece-nos numa bandeja um futuro distorcido e artificial, mas termina antes de oferecer tudo o que ambiciona.

Recaindo um pouco no estilo noir e alimentando-se de um ambiente sombrio, com uma iluminação contrastante em algumas cenas, o filme sobrevive dos excelentes efeitos visuais, muitos deles feitos de forma prática, contribuindo para o quão realistas e bizarros se fazem sentir. Nesse campo visual, temos ainda aparelhos que funcionam como biotecnologias, unindo movimentos orgânicos com um toque de industrial. Esses aparelhos têm um design soberbo, simulando uma sinergia humano-animal, com detalhes que remetem para casulos e até esqueletos, contribuindo para um dos melhores aspetos do filme – a componente visual, que define um equilíbrio perfeito entre visualmente apelativo e o ligeiro desconforto pelo q.b. de bizarro.

A banda sonora foi criada de modo a tornar intangível os momentos de efeitos sonoros com os de música ambiente, resultando assim numa experiência auditiva envolvente e que submerge o espectador naquela realidade. A mesma foi concebida por Howard Shore, compositor canadiano responsável pela trilha intemporal da trilogia O Senhor dos Anéis.

A mensagem está presente e, pela tamanha ambiguidade da narrativa, há muitas propostas a serem retiradas. Desde uma crítica à procura por modificações corporais de modo a nos sentirmos melhor com o nosso corpo, ou a fiscalização por parte de entidades governamentais que pretendem controlar corpos alheios – podendo aproximar-se das últimas leis aprovadas face à criminalização e ilegalização do aborto -, até à crítica do caminho que a humanidade está a traçar, quase que assinando já esta sina, ao ignorar o impacto das alterações climáticas, Crimes of the Future pode ilustrar um resultado extremo das escolhas feitas até hoje.

No entanto, não é um filme fácil de se ver. A narrativa encontra-se completamente fragmentada e terminamos o filme com espaços por preencher e perguntas por responder. Embora seja apologista de que um bom filme não requer, necessariamente, uma boa narrativa (ou que seja sequer coerente), este projeto perde-se demasiado, existindo momentos em que os visuais são o seu único alicerce. É palpável o potencial na visão de Cronenberg e tudo o que este filme podia alcançar, mas termina deixando apenas uma sensação de que estivemos duas horas a ver um filme a crescer, sem nunca atingir tudo o que nos prometeu.

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top